Ser feliz e demonstrar isso tornou-se uma obrigação. Sutilmente, essa ideia espalha-se por diferentes lugares: das perguntas e respostas automáticas ( Oi, como vai? - Tudo bem, e você?) às postagens de redes sociais, que selecionam conteúdos a favor da construção de uma imagem ideal e idealizada. Pequenas ações impõem e reproduzem uma lógica quase ditatorial: seja feliz, sempre, ou o máximo de tempo que você puder. E não apenas seja, mas também comunique. As pessoas precisam saber que a sua vida é maravilhosa e o quanto vocé é uma pessoa feliz e realizada. Veja bem, não defendo que uma vida considerada feliz, e que demonstrar isso, seja errado. O que questiono é a obrigatoriedade de construí-la e demonstrá-la. Nesse sentido, abrem-se, pelo menos, duas outras questões: a falta de lugar de tudo que se inscreve como não-feliz, por um lado; e questões relacionadas à individualização do fracasso, por outro lado. Em minha concepção, ambos os aspectos contribuem para o aumento do sofrimento psíquico. Então, o que nesse texto eu chamo de ditadura da felicidade, possivelmente contribui para a infelicidade, ou a impossibilidade de felicidade.A obrigação de sentir-se sempre feliz pode fazer com que sentimentos e vivências relacionadas à tristeza, angústia, medo e desânimo sejam sufocadas, evitadas e negligenciadas (porque, afinal de contas, pessoas felizes não são assim...). Instaura-se uma espécie de fuga de quase tudo que tenha uma conotação dada como negativa. Não permitir a vivência e expressão de sentimentos ditos negativos é uma forma de auto-violência, é não acolher a si mesmo, é ser o próprio carrasco. É auto mutilar-se emocionalmente, exigindo de si mesmo algo que talvez não seja possível, e nem viável. É justo sofrer, tanto quanto é justo não sofrer. Há momentos e situações que entristecem sim, e não há nada de errado em dar lugar à dor e ao sofrimento. Até porque, ao evitar-se viver a dor e a tristeza, evita-se também lidar com ela; ignorar sentimentos e vivências negativas passa a ser uma estratégia ineficaz para tentar eliminar algum mal-estar. Passar por, dar lugar a, autorizar-se a sentir é diferente de glamourizar o sofrimento; é diferente de vitimizar-se; é diferente de usar da situação com fins de obter outros benefícios (atenção, auxílio, cuidado, carinho). Sintetizando este ponto, permitir-se viver e expressar a tristeza não significa permanecer sempre nela, tampouco significa não utilizar-se de recursos disponíveis (ou desenvolver novos recursos) para concretizar um estado de bem-estar subjetivo possível.
Para além do âmbito individual, as relações sociais não autorizam o sofrimento. A forma como se pensa hoje sobre felicidade está atrelada, também, ao jeito de se inserir e estar na sociedade e na comunidade: lugares a serem ocupados (ou não) e papeis a serem desempenhados (ou não) possibilitam o acesso a recursos materiais e financeiros, que por sua vez são utilizados com o fim de viabilizar o suprimento de necessidades de diferentes ordens. Em uma lógica neoliberal e meritocrática, quem se esforça o suficiente, consegue. O fracasso em prover recursos a si mesmo, no momento presente, e em organizar-se quanto à provisões futuras, é tributado a cada um. Nessa perspectiva, desconsideram-se os determinantes históricos, sociais e culturais que condicionam as possibilidades de existência tanto de grupos hegemônicos/dominantes quanto de minorias: aqueles, detentores de privilégios; estes, cerceados em acessar seus direitos fundamentais legalmente garantidos (por hora). Esse discurso encontra ressonância entre grupos que tem se dedicado ao cuidado humano, correntes do que posso chamar de pensamento positivo*, em sua grande maioria bem intencionados. Porém, em sua leitura da realidade, oferecem uma perspectiva parcial das condições de tristeza: o sujeito, e só ele mesmo, é considerado culpado pela situação em que se encontra. Situação esta que transcende todas as possibilidades de articulação individual para sua transformação, uma vez que está engendrada nos mecanismos políticos, econômicos, sociais e ideológicos de perpetuação da desigualdade social. Um olhar individualizante, nesse sentido, é também uma forma de violência, pois oferece uma compreensão parcial e exige uma resposta não possível e nem resolutiva ou eficaz, na transcendência dos estados de infelicidade. Abstratamente institucionalizado, enquanto valores subjacentes aos discursos sociais e midiáticos e aos sistemas coletivos de valores, esta narrativa inviabiliza tudo aquilo que é diferente do que é majoritariamente dado, aquilo que as maiorias ditas normais estabelecem como norma e que passa a constituir um objetivo, um ideal de vida a ser perseguido, que se pauta principalmente em padrões de sucesso material. Não se pode querer não viver, por exemplo. Não se pode não estar bem. Não se pode estar só. Não se pode não estar feliz. Então, retomando minha proposição dos desdobramentos da ditadura da felicidade: por um lado não existe autorização (individual e coletiva) à vivência e expressão do sofrimento; e por outro lado as pessoas são individualmente responsabilizadas por estarem implicadas em situações de sofrimento cujos determinantes transcendem suas possibilidades individuais de enfrentamento. Qual espaço restaria para confirmar e validar a dor e o sofrimento, em suas diferentes faces? As possibilidades poderiam ser encontradas nas relações, a partir das quais abrem-se compartilhamentos, ressignificações. No entanto, estas também mostram-se como perpetuadoras do não lugar e da não aceitação ao sofrimento. Poderíamos falar de relações doentes, não acolhedoras, até mesmo violentas e aniquiladoras, impondo a...felicidade constante, e não validando ou abrigando nada diferente disto. Penso também nas artes como uma via possível de expressão e significação. E, ainda, penso nos cuidados humanos oferecidos por profissionais como psicólogos.Feitas estas considerações, quero encerrar refletindo (e me questionando) sobre o lugar da clínica diante de toda esta problemática, qual seja, o espaço que é dado (ou não) ao sofrimento, às vivências com conotação negativa, à dor e à tristeza. Em uma perspectiva gestáltica, a ética clínica relaciona-se com o termo êthos: postura de abertura e acolhimento ao estranho, ao algo outro, àquilo que desvia e se mostra desde si, conforme Müller-Granzotto, Müller-Granzotto (2016). É nesta perspectiva que me proponho a atuar enquanto psicólogo, oferecendo acolhimento a esse algo-outro-estranho que por vezes se faz presente, e tumultua a forma como se viveu até então. Acolhê-lo, dar lugar ao estranhamento e àquilo de novo que se mostra, considerando que esse ineditismo pode ter em si a potência de novas criações, novas formas de ser si-mesmo; dar lugar a quem se é para então-e-depois transcender e transformar. E autorizar-se a ser si-mesmo, assumindo os riscos, as dores, as delícias, os possíveis, as imperfeições, as falhas, os acertos, enfim - quem se é e se descobre ser - me parece um jeito gostoso, leve e sustentável de ser feliz.
Müller- Granzotto, Marcos José. Müller-Granzotto, Rosane Lorena. Fenomenologia e Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2016.
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