O não sempre é dito
- Cleiton Zirke
- 11 de out. de 2019
- 5 min de leitura

Tenho ouvido de amigos e pessoas próximas a respeito da dificuldade de dizer não, mesmo diante de situações nas quais ele seria necessário e benéfico. Reuni algumas reflexões sobre esse tema, organizadas neste texto. Uma vez vi uma postagem em rede social, com uma foto de algumas ruas e pessoas transitando, e uma frase curta. A frase, que capturou minha atenção, dizia: o endereço mais difícil do mundo é o lugar do outro. Onde, em nossas vidas, colocamos todas essas outras pessoas que não somos nós mesmos? Isso me fez refletir, e acabei concordando com o autor(a): difícil achar esse lugar. Seres relacionais que somos, nossa vida se dá, desde sempre, em relações sociais, das mais diversas. Estivemos dentro de um Outro, fomos totalmente dependentes de vários Outros, nos confundimos com esses Outros. Fazemos alguns ensaios, com diferentes pessoas, para tentar achar o lugar do outro: primeiro, os Outros-família ou Outros-cuidadores; depois Outro-colega de escola, Outro-amigo; Outro-parceiro afetivo; Outro-relação profissional, ad infinitum. E depois, também a partir de elementos e significações provenientes de nossas experiências com alguns Outros (pessoas, cultura, meio ambiente) podemos construir uma espécie de identidade, um "eu" (que não é só meu, mas em alguns sentidos, compartilhado com alguns desses Outros), o que em Gestalt-terapia nomeamos como a função Personalidade do sistema self: minha réplica verbal, quem eu digo que sou quando a isto sou interpelado, conforme Perls, Hefferline, Goodmam (1997). Pois bem. O outro não é da ordem da passividade, não está, quase nunca, estático. Pelo contrário, nas relações, este Outro pede, solicita, faz demandas, as vezes de maneira clara e explícita, as vezes de maneira camuflada e implícita. Diante destas demandas, podemos assumir posturas diversas. Quero me ater, especificamente, a dois pontos dessa questão: primeiro, que atender ou não a essas demandas é fruto de uma decisão; e depois, como esse estar diante do outro pode ser regulado com limites. Bem, há outras faces desse tema, como o aniquilamento do Outro social, o aniquilamento de si diante do Outro social, que poderão ser tratadas em outro momento. Diante de alguma demanda, qualquer que seja ela, podemos decidir por atendê-la ou não. Algumas vezes, decidir por não atender, e posicionar-se nesse sentido, implica em frustar o desejo do outro, em não corresponder às expectativas. E para algumas pessoas, isso pode ser bastante desconfortável. Nesse sentido, pode ser percebido como uma ameaça ao vínculo (que está sendo construído ou já existe); pode desencadear fantasias de perda e rejeição; pode significar ter que lidar com reações desagradáveis do Outro, como desaprovação, desqualificação, afastamento, e até formas de violência física ou psicológica. Para fazer frente a isso, me parece que as vezes a possibilidade de decidir sobre as demandas que nos chegam é suprimida: as respostas diante do outro são "automáticas". Porém, cada vez que deixo de dizer não ao outro, em uma situação que seria necessário fazê-lo, digo não a mim mesmo. Daí o título: o não sempre é dito. O que muda é a quem ele é dito. E esse automatismo que mencionei por vezes pode nos levar à autonegligência. Uma grande série de nãos consecutivos a si mesmo pode ser bastante devastadora. O outro lado dessa moeda: talvez o atendimento, o dizer sim às demandas, seja alguma forma de dispositivo de controle, ou melhor, de tentativa de controle. Nesse sentido, me negligencio e agrado ao outro para não correr o risco de perdê-lo (veja, essa necessidade do outro foi construída por longos anos de vida...). Apesar disso, e porque não podemos existir em isolamento, as relações e trocas com esses muitos Outros as vezes até funcionam bem: necessidades são supridas, há uma simetria da ordem da reciprocidade entre atender demandas do outro e ter as próprias atendidas (porque eu sou o outro do outro, demandante e demandado). Quando consigo equilibrar essa balança entre me respeitar (minhas necessidades de diferentes ordens, meus valores, meus princípios, minha ética) e atender ao outro, as relações podem ser bastante satisfatórias. Pessoas que de forma frequente não conseguem articular este equilíbrio, e ao invés de atender à demanda do Outro, geralmente a desconsideram, são percebidas como egoístas ou excessivamente autocentradas. O Outro social é menosprezado, subestimado, e um resultado possível é a precarização da rede de relações. Veja, parece meio complicado, olhando desta forma: pode ser bom ou ruim dizer não demais a si ou ao outro; pode ser bom ou ruim dizer não de menos a si ou ao outro. Bem, isso nos leva ao segundo ponto, limites. Como equalizar e equilibrar todas essas respostas de não e sim, pensando em mim e no outro? Talvez seja frustrante saber que não existe uma resposta pronta. E que a melhor resposta é: depende. No entanto, quando penso nisso, creio que alguns pontos contribuam na criação de respostas. Conhecer a si mesmo e quais são as próprias necessidades e desejos é um primeiro movimento importante, uma vez que quanto mais apropriado de mim estou, maior a coerência com que me coloco nas minhas relações. Tenho uma noção de quem sou mais clara, que pode servir de filtro/critério para escolher o que fazer com as demandas dos vários Outros presentes na minha vida. De conhecer a si também resulta na possibilidade de fazer distinção entre eu mesmo (e as minhas demandas) e o outro (e suas demandas). Cabe, primeiramente, me suprir. O que não significa, necessariamente, adotar uma postura excessivamente individualista e desconsiderar aos Outros. Um segundo ponto é o treino de dizer não, é algo que, como quase tudo, se aprende fazendo. Cabem aqui experimentações, auto permissões para negar aquilo que não possa ser atendido, e experienciar também algum possível desconforto presente na situação. Bem, quando sou coerente comigo e me respeito, e digo não ao outro de uma forma respeitosa, vivencio experiências de autorrespeito; e posso estar diante do outro em inteireza e honestidade. Lidar com as negativas recebidas do outro em relação aos meus desejos e expectativas é o outro lado da moeda. Há outro ponto que me parece importante, embora um pouco mais complexo: identificar em qual lugar esse Outro me coloca, e em qual lugar eu o coloco, auxilia no estabelecimento de limites reguladores de relações. Nesse sentido, tentar responder a algumas perguntas pode contribuir: qual papel esse outro tem na minha vida? O que espero que ele faça, como espero que se porte comigo? O lugar em que me coloca, me cabe? Dependendo do que se percebe, pode ser necessário reorganizar a forma como a relação se dá, considerando que posso decidir ocupar ou não o lugar no qual o Outro me coloca. Finalizo com um texto bastante famoso da Gestalt-terapia. Um tanto quanto controverso. Eu mesmo já tive minhas ressalvas em relação a ele. Mas creio que ele evidencie de forma muito real as possibilidades de concretizar encontros, e que possa estimular boas reflexões, após as considerações feitas. Me parece que dá um bom fechamento ao texto, e também abre novas Gestalten. "Eu sou eu, você é você. Eu faço as minhas coisas e você faz as suas coisas. Eu sou eu, você é você. Não estou neste mundo para viver de acordo com as suas expectativas. E nem você o está para viver de acordo com as minhas. Eu sou eu, você é você. Se por acaso nos encontrarmos, é lindo. Se não, não há o que fazer". Fritz Perls, 1969.
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