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Reconexão

  • Foto do escritor: Cleiton Zirke
    Cleiton Zirke
  • 1 de nov. de 2019
  • 4 min de leitura

Hoje vim a pé para o consultório. Saldo da caminhada: uma tartaruga, dois jacarés, duas garças pretas, uma garça branca, uma mamona despencando do pé, um amigo de bicicleta. Ao longo de 50 minutos acompanhando o manguezal, sob o sol, temperatura na casa dos 30 graus, vento suave, fiquei pensando sobre as palavras que marcaram meu final de semana: conexão, desconexão, reconexão.

. . . Por vezes, sou testemunha de um fenômeno que nomeei como encapsulamento; o percebo em mim e nas pessoas a minha volta. Explico, pois me parece ter alguma relação com desconexão. Uma cápsula é um conjunto de alguma substância contida em um invólucro, que a protege, delimita e separa do ambiente à sua volta; a cápsula é vista por seu invólucro. Percebo algo semelhante nas pessoas, em diferentes níveis, quando limitamos nossa imersão no entorno ambiental imediato que nos está disponível. Há uma interposição de objetos, que muitas vezes fazem a mediação entre o corpo e o meio, cerceando os sentidos.

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Há cápsulas necessárias: as roupas. Aquecem, protegem, escondem, dizem de uma identidade, de valores, de posições sociais. Há cápsulas para os pés: calçados, que cumprem funções semelhantes às das roupas e ainda absorvem certos impactos quando caminhamos ou corremos. As cápsulas para os olhos chamamos óculos, as vezes algumas pequenas telas também cumprem essa mesma função; fones de ouvido podem encapsular os ouvidos. Até perfumes podem encapsular o olfato, encobrindo outros cheiros. Isso me leva a pensar o quanto nos alienamos do ambiente que nos cerca, e nos deixa dentro de cápsulas. Geralmente não participamos da produção das cápsulas, é mais comum que as compremos - trocamos o tempo de vida que investimos para ter dinheiro, que é trocado por objetos encapsulantes. As vezes nos alienamos do tempo, pelas vias da aceleração e da instantaneidade, que alteram as formas como nos experienciamos no mundo.

. . . Nossas mãos raramente tocam o alimento que ingerimos, nem no preparo, tampouco no próprio ato de comer. O chão, a terra, areia, o barro geralmente não são tocados pelos pés. Banho de chuva? Raridade. Óculos solares se interpõem entre os olhos e a luz que cada objeto reflete, as vezes alterando as cores. O mundo é, nesse caso, aquele por detrás das lentes. Música ocupa o lugar dos sons do espaço ambiental (que também pode ser ouvido como uma música). Algumas partes do corpo raramente são expostas à luz e ao vento. O corpo vai ficando preso dentro das cápsulas, desconectado do meio ao seu redor.

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A mesma lógica da desconexão com o ambiente pode ser aplicada na desconexão das pessoas consigo mesmas e umas com as outras. Encapsulados em si, os sujeitos contemporâneos limitam e por vezes impedem a construção e aprofundamento das relações pessoa a pessoa. Smartphones e redes sociais as vezes se atravessam entre relações interpessoais do mundo fora das telas: a virtualidade, com toda a sua incorporeidade, se sobrepõe à realidade presente e concreta daqueles que conosco compartilham espaço próximo e tempo simultâneo. Diante disso, há um campo que se configura pautado na desconexão, que potencialmente contribui para experiências significadas como isolamento, solidão. A evitação do contato, em Gestalt-terapia, configura os ajustamentos neuróticos: há uma interrupção no contatar o mundo e no fluxo de energia, que deixa marcas no corpo, na gestualidade e nas relações. O estranho desconhecido que nos habita, manifesta-se. Intervenções clínicas possíveis visam indentificar essas inibições, acolhê-las e trabalhar a partir delas, proporcionando desvios e deslocamentos que possibilitem novas formas de ser. . . . Uma experiência de conexão mais completa com o ambiente pode nos auxiliar a ter experiência de nós mesmos mais próxima da integralidade, e ter desdobramentos na autoaceitação e, consequentemente, na aceitação do outro: os outros possíveis a partir de si, o eu possível a partir de mim.

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Lanço alguns desafios: andar descalço na terra, na areia, na grama; caminhar sem fones de ouvido; quando estiver em algum ambiente novo, deixar o celular de lado e conversar com algum desconhecido; quando possível, experimentar-se sem roupa e perceber as novas sensações do corpo; observar o mundo ao redor sem lentes - respeitando necessidades em relação à proteção do sol; comer com as mãos, sem mexer no celular, sem música e sem televisão ligada no ambiente; tentar ouvir a melodia dos sons ao redor. Vá a algum lugar sozinho, e perceba como é estar ali consigo mesmo; vá a algum lugar conhecido passando por caminhos diferentes; caminhe pelos dois lados de uma mesma rua e veja como as perspectivas se alteram. Pega algum bicho no colo sem medo de ser feliz. Abrace como se não houvesse amanhã. São sugestões de reconexão com o experimentar a nós mesmos de formas novas. Quanto a mim, além do corpo, me experimento em processo de reconexão também ao escrever. Se as experiências forem intensas, talvez as palavras tomem forma líquida de lágrimas, e talvez possam ser transformadas em textos, poemas, desenhos, danças, esculturas, recortes - arte pode surgir como flor das raízes e sementes daquilo que nos afeta e atravessa.

. . . Cleiton Zirke Psicólogo CRP 12/18226

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