O último dia
- Cleiton Zirke
- 11 de out. de 2019
- 2 min de leitura

Em 27 de janeiro de 1945 o campo de concentração Auschwitz-Birkenau foi libertado por tropas soviéticas. Comemora-se hoje o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Isso sempre me mobilizou profundamente. Em 2017, escrevi um poema sobre esse dia de libertação. Em memória a essas vítimas, o compartilho abaixo. História: conhecer para não repetir.
O último dia
Chuva fria que banha as costas nuas,
vento gelado que corta os lábio secos.
Aeroplanos cortam céus azuis,
Abandono gélido e branco.
Marcham intrépidos os passos certeiros.
Impetuosos e altivos, brilho coroado.
Orgulho refulgente das fardas estreladas.
Ouvidos surdos ao gemido e ao choro.
Metal lancinante transpassa os que choram,
passos trôpegos carregando farrapos.
Humanos farrapos e a escória, vergonha penumbral.
Listras azuis e brancas e um número na carne.
Roubaram-te os filhos, roubaram-te as raízes, roubaram teu amanhã.
Profanaram tua fé e tua esperança,
que vacilantes estão, chama de vela no vento.
Alteia tua voz em incontido pranto
Arames farpados te ouvem e te olham.
A pele fina machucada, esticada e marcada
Recobre os ossos que por ela aparecem.
O sono foge dos teus olhos, como a força dos teus braços
e a comida da tua boca.
Já não consegues mais gritar, teu choro é seco,
já se foi a última lágrima.
Botas pretas pisam o chão frio
Estão altivos, impetuosos e orgulhosos.
Braços em riste saúdam o colossal.
Invencíveis e inabaláveis,
avançam determinados e audazes.
O medo, teu companheiro fiel e constante
gritando “achtung”, vem te visitar nas longas e malditas noites,
quando teu corpo magro sobre as madeiras se deita,
mas não podes mais dormir.
Tuas lembranças de tudo o que se foi tingem de cores cálidas
os muitos fantasmas que te assombram.
Conjuras teu deus, que parece mudo. Em agonia tremes ante os dias que estão por vir. Teus joelhos vacilam quais paus quebradiços. Horror expectante de qual será o último alvorecer, e cada dia pode ser o último dia.
O último dia, o último dia, o último dia.
Sucessão infinda andando por um túnel escuro.
Que te leva até onde tuas unhas arranham a parede
na busca desesperada pelo ar que te falta.
Já não és mais. Nem amigos teus, nem irmão teus são.
Nem nada teu, é. Nem nada podes ser.
A estrela, o martelo e a foice marcham juntos.
Impetuosos e altivos, brilho coroado.
Orgulho refulgente nas fardas estreladas.
Trazem a liberdade nos braços.
Nos mesmos braços tomam os filhos dos campos
e os ajuntam das sarjetas e das valas.
Filhos que já não choram mais e nem espantam.
Suturam as feridas, matam a sede e a fome.
E eis que se foi o último dia, e se foi a última noite. Brilha, Estrela de Davi! Limpa o sangue e a sujeira das tuas vestes. Joga fora tuas listras e o número da tua vergonha. Orgulha-te de ti mesmo, volta ao teu lugar, se o encontrares. Brada em alta voz, já o dia alvoreceu, já as trevas dissiparam-se. Brilha, Estrela de Davi!
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